O que poderia haver de comum entre uma crise epilética e centenas — ou
milhares — de pessoas atravessando uma ponte, com passos sincronizados,
como a marcha de um batalhão de soldados? Aparentemente, nada.
Mas a segunda situação é uma boa analogia para explicar a primeira. O
andar sincronizado dos indivíduos faz a ponte ficar instável e balançar.
Analogamente, a sincronia de milhares ou milhões de neurônios é o que
caracteriza o ataque da doença. Agora, pesquisadores da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG) desenvolveram e patentearam uma técnica
que, por meio de pulsos elétricos, dessincroniza o "passo certo" dos
neurônios, bloqueando a crise antes que ela aconteça.
Segundo o engenheiro eletrônico e doutor em fisiologia humana Márcio
Flávio Dutra Moraes, coordenador do Núcleo de Neurociências (NNC) da
UFMG, o fenômeno da ponte foi visto na inauguração da Millennium Bridge,
em Londres, em 10 de junho de 2000.
"Ocorreu algo interessante, que fez a ponte perder sua estabilidade",
conta. "Os engenheiros que a construíram não levaram em conta o que
aconteceria se um conjunto muito grande de pessoas atravessando-a
começasse a sincronizar seus passos. Quando isso aconteceu, ela começou a
balançar muito e assustou todos, que acharam que a estrutura estava
muito instável."
Moraes garante que o fenômeno jamais teria acontecido se o mesmo número
de pessoas tivesse andado sobre a ponte de forma dessincronizada. "A
técnica que desenvolvemos — se feita uma analogia entre cada uma das
pessoas como sendo um neurônio na rede que compõe o cérebro — interfere
na capacidade de cada uma delas de ver o passo do vizinho e, portanto,
não deixa com que um número grande de passos seja sincronizado.
O objetivo de dessincronizar a rede neural é evitar que uma atividade
anômala seja transferida de uma para outra área. Ou seja, o tratamento
usa estimulação elétrica dessincronizante para 'bagunçar' o
funcionamento da rede de neurônios e evitar assim o sincronismo
anormal."
O pesquisador explica que num ataque de epilepsia essas células do
cérebro começam a disparar sinais acima do normal, ou seja, elas ficam
hiperexcitadas, e fazem isso em hipersincronia. "O que faz com que a
crise, que está numa área do cérebro, se propague para outra", explica.
"Voltando à analogia da ponte, imagina que eu desse um headphone para
cada pessoa e tocasse a mesma música para todas. Elas dançariam no mesmo
passo e a ponte iria balançar. Mas se eu colocasse uma diferente para
cada uma, os passos seriam diferentes também e a estrutura não se
moveria."
Segundo Moraes, a epilepsia é tratada até hoje com drogas ou cirurgia.
"Apesar de já termos mais de cem anos de história de desenvolvimento de
fármacos para a terapia da doença, houve pouco avanço em termos de
resolver casos clínicos que são refratários ao tratamento com algumas
das primeiras drogas disponíveis", diz.
"Elas deixam os neurônios mais lerdos, menos excitados. Mas isso tem
efeitos colaterais ruins. Os medicamentos também deixam o cérebro mais
lento para outras atividades, como estudar ou trabalhar, por exemplo."
No caso da cirurgia, o que é feito é remover a parte da massa
encefálica que está com problema, ou seja, que causa as crises
epilépticas. Com isso, tira-se o mal, mas também um grande número de
circuitos neurais, que podem estar envolvidos em atividades importantes
do cérebro. Além disso, é um tratamento que não pode ser aplicado para
todos os casos da doença.
Os pesquisadores pensaram então em usar um tipo de eletroterapia (de
ação muito mais rápida na rede neural quando comparada às terapias
farmacológicas) que evitasse o sincronismo da atividade entre áreas,
mesmo ao custo de aumentar um pouco sua excitabilidade.
A técnica que desenvolveram, chamada non-periodic stimulation (NPS), é
não periódica e dessincronizante. Na analogia da ponte, é como se cada
neurônio ouvisse uma música diferente.
Para aplicar a técnica, os pesquisadores desenvolveram um protótipo de
um dispositivo microcontrolado. O protótipo atinge as áreas do cérebro
onde está sendo gerado o ataque, dessincronizando-as. É um nanofio — um
nanômetro (nm) é a bilionésima parte de um metro, sendo que um fio de
cabelo humano tem entre 80 mil e 100 mil nm de espessura) — que será
implantado no paciente, parecido com um marca-passo no cérebro. "Na
verdade, será um 'desmarcapasso' cerebral, para dessincronizar uma crise
epiléptica", explica Moraes.
A diferença para um marca-passo é que esse dispositivo não estará
ligado o tempo todo. Só o será quando um ataque estiver para acontecer,
pois ele consegue detectar sinais que o antecedem. Mas, a princípio, o
paciente terá de usá-lo permanentemente.
Isso pode mudar com tempo, no entanto. "Estamos mostrando que existe
uma boa possiblidade de que essa ação de detectar e dessincronizar possa
levar, com o tempo, o cérebro a sofrer alterações e aprender a fazer
isso sem o dispositivo", explica Moraes. "Pode ser que depois de um
tempo usando o equipamento ele possa ser dispensado. Isso seria uma
cura, mas ainda estamos muito no início de mostrar que isso funciona."
O que eles conseguiram demonstrar até agora é que a técnica tem o
potencial para substituir a cirurgia no tratamento das epilepsias que
são refratárias a tratamento farmacológico. Além disso, pode ser também
uma alternativa ao tratamento com drogas em alguns pacientes com tipos
específicos da doença.
"Fizemos muitos avanços nos ensaios pré-clínicos (com animais), mas
estamos apenas no começo dos ensaios clínicos (em humanos)", conta
Moraes. "Em suma, temos outros projetos feitos com pessoas que mostram
que a 'sondagem' das redes neurais por meio de estimulação elétrica
controlada pode ser uma boa ferramenta diagnóstica e preditiva da
ocorrência de crises da doença. Ainda não iniciamos os protocolos de
bloqueio de ataques em pacientes, pois precisamos de financiamento e
parceiros para tocar esta parte do projeto para frente."
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