Em 2013, Mark Zuckerberg, cofundador do Facebook, divulgou um documento
intitulado "A conectividade é um direito humano?" em que fez "uma
proposta de como podemos conectar os próximos cinco bilhões de pessoas",
com a ajuda de um consórcio de empresas de tecnologia batizado de Internet.org.
O plano de Zuckerberg não só incluía a ampliação do acesso às redes de
telecomunicações existentes como também abrangia o desenvolvimento de
novas tecnologias, como drones movidos a energia solar, que vagariam por
áreas remotas, oferecendo acesso a conexões de dados nestas regiões.
Metade da população do mundo vive sem uma conexão confiável à internet,
o que limita seu acesso a educação, serviços financeiros, engajamento
político, liberdade de expressão e mais. Entre eles está Salim Azim
Assani, cofundador do WenakLabs, um centro digital em N'Djamena, capital
do Chade.
Em 2008, as autoridades governamentais bloquearam o acesso a redes
sociais como Facebook e Twitter, citando como motivo a disseminação do
extremismo religioso. Estes serviços permaneceram fora do ar por 16
meses. "Perdemos dinheiro e alguns de nossos clientes por causa do
bloqueio à internet", diz Assani.
Cinquenta anos depois que os primeiros computadores foram ligados à
internet e 30 anos desde que a World Wide Web foi construída como uma
"rede de redes", o mundo online gratuito e aberto previsto pelos seus
pioneiros está sob ataque.
Nos últimos anos, foram notificados cortes parciais e até apagões
totais na Índia, no Sudão, na Eritreia, na Etiópia, na Síria, na
República Democrática do Congo e no Iraque.
Controle do acesso
Joshua Franco é vice-diretor da Amnesty Tech, braço da organização sem
fins lucrativos Anistia Internacional que monitora a proteção de
direitos humanos em meio às novas tecnologias e no ambiente digital.
Embora sua organização não monitore de forma abrangente o mundo em
busca de bloqueios da internet, ele diz que a frequência com que isso
acontece está aumentando. "Nas regiões oeste e central da África, houve
12 casos de bloqueios intencionais em dispositivos móveis e internet em
2017, contra 11 em 2016. Em 2018, foram 20. Nosso medo é que continue
aumentando."
Normalmente, a justificativa para esses cortes é conter distúrbios
sociais: quando as autoridades do Sri Lanka cortaram o acesso às redes
sociais após os ataques terroristas da Páscoa de 2019, disseram ser
necessário para evitar a disseminação de informações erradas e pânico.
"Observamos mais o impacto, porque nem sempre dá para saber exatamente
os motivos. Mas a coincidência com eventos públicos cruciais, como
eleições e protestos, levanta suspeitas de que é uma forma de reprimir a
liberdade de expressão", diz Franco.
Bloquear a internet é uma medida drástica, mas outros métodos para controlar o acesso à rede podem ser igualmente dramáticos.
O governo russo está, por exemplo, construindo uma internet paralela
que existe inteiramente dentro de suas próprias fronteiras. Uma vez
concluída, dará às autoridades russas controle total sobre o que os
usuários no país podem ver e publicar online.
E os chineses acessam um dos espaços online mais regulamentados do
mundo, em que restrições a sites e serviços estrangeiros, a filtragem de
conteúdo e leis rigorosas para empresas que operam na internet se
combinam para formar o que é conhecido como o "grande firewall da
China".
Essa tendência está presente mesmo em nações mais liberais. Uma
diretriz sobre direitos autorais aprovada pela União Europeia neste ano,
conhecida como Artigo 13, obriga operadoras de serviços de internet a
criar filtros para remover automaticamente conteúdos considerados
ilegais.
No Reino Unido, o governo afirmou diversas vezes que deveria ter
permissão para quebrar a criptografia de aplicativos de mensagens
privadas a pagamentos online. E, nos Estados Unidos, os legisladores
tentaram derrubar as regras de neutralidade da rede que garantem que os
serviços online sejam tratados igualmente.
Um direito humano?
Dois anos após o lançamento do Internet.org, Zuckerberg compareceu à
Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) para reiterar
que "a internet pertence a todos".
Ele não está sozinho nessa visão: relatórios do Conselho de Direitos
Humanos da ONU em 2011 e 2016 criticaram as restrições à internet por
violarem acordos internacionais sobre liberdade de expressão e
informação. Nas duas vezes, os documentos foram amplamente divulgados
como sendo declarações de que o próprio acesso à internet é um direito
humano.
"A internet é um direito humano", concorda Assani, que também
administra uma organização sem fins lucrativos dedicada à promoção de
serviços digitais no Chade. "Os jovens têm o direito de usar as mídias
sociais e a internet e precisam usá-las para aprender a fazer negócios.
Todas as pessoas têm o direito de usar a internet."
Vint Cerf não concorda. Sua opinião deve valer alguma coisa: como
cocriador do protocolo TCP/IP, modelo usado como base das comunicações
de dados online, ele é conhecido como um dos "pais da internet". Após o
relatório de 2011 da ONU, ele escreveu um editorial no jornal americano
The New York Times refutando a noção de que o acesso à internet é um
direito humano.
Cerf afirmou que, como tecnologia, a internet é uma facilitadora de
direitos. "No passado, se você não tinha um cavalo, era difícil se
sustentar. Mas o direito nesse caso era o de ser capaz de se sustentar e
não o direito a um cavalo." Ou seja, a internet seria um meio para um
fim e não um fim em si mesmo.
Esta também é a posição do Conselho de Direitos Humanos da ONU. Os
relatórios publicados em 2011 e 2016 destacaram a natureza essencial da
internet, ao permitir que as pessoas exerçam sua liberdade de expressão,
opinião e informação, mas não declararam o acesso à rede aberta e
gratuita como um direito humano.
De fato, uma internet que opera para o benefício de todos
necessariamente vem com algumas restrições. "Não é ilegal restringir os
direitos humanos em situações-chave", diz Franco.
Por décadas, órgãos reguladores vêm monitorando a rede, introduzindo
leis para reduzir a disseminação de músicas piratas, venda de drogas,
pornografia infantil, propaganda terrorista, discurso de ódio. Mas o
problema com uma rede usada por bilhões de pessoas é que cada uma tem
sua própria ideia do que é um conteúdo ilegítimo.
Esta não é apenas um debate válido para os países, mas também para os
serviços online. "Os termos de uso do Facebook não estão acima da
Declaração de Direitos Humanos da ONU", diz Franco.
Um contrato para a internet
Reivindicar nossos direitos na internet significa, portanto, assumir
uma postura proativa. A World Wide Web Foundation é uma organização sem
fins lucrativos que visa defender as liberdades online. No Fórum de
Governança da Internet em Berlim, na Alemanha, em novembro, lançará seu
Contrato para a Internet.
"Foi realmente um desafio para os formuladores de políticas chegarem a
um acordo sobre o que é a internet", diz Emily Sharpe, diretora de
políticas da fundação. "O Contrato para a Internet é sobre garantir que a
rede seja acessível e capacite a todos."
O documento afirma os princípios de uma internet livre, aberta e
inclusiva e faz um manifesto para todos que visam tornar essa visão uma
realidade. Os governos que assinarem o contrato se comprometerão a
conectar todos igualmente, manter a internet no ar e respeitar a
privacidade dos cidadãos.
As empresas podem prometer o mesmo, além de concordar em desenvolver
tecnologias que "apoiem o que há de melhor da humanidade e combatam o
que há de pior". Cidadãos também podem aderir e concordar em criar,
colaborar, construir comunidades e defender o espaço online.
"Nos anos desde que foi criada, vimos a internet avançar em termos de
direitos humanos", diz Sharpe. Mas ela observa que, como com a maioria
das tecnologias, o entusiasmo inicial em torno da inovação geralmente
negligencia o potencial de dano que ela pode causar.
Ela espera que o contrato guie os formuladores de políticas na direção
de regulamentos que equilibrem a necessidade de mitigar os danos online
com o cumprimento dos direitos humanos na rede.
Apesar dos esforços para conectar o mundo, ainda existem bilhões de
pessoas que não têm acesso à internet. Mas, em meio a isso, não devemos
perder de vista que tipo de internet queremos. Não basta conectar o
mundo: temos que trabalhar duro para garantir que haja uma internet à
qual valha a pena se conectar.
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