O clínico geral cubano Frank Rodríguez*, de 35 anos, trabalha há 4
anos em um hospital do município de Serra, no Espírito Santo. Rodríguez
faz parte de uma das primeiras turmas de médicos cubanos que chegaram ao
estado pelo programa Mais Médicos. Mas o fim da parceria com Cuba no programa pode atrapalhar os planos do profissional, que encontrou no Brasil uma chance de recomeço
Na
última quarta-feira (14), Rodríguez foi surpreendido quando, em nota, o
Ministério da Saúde de Cuba anunciou o fim da parceria, atribuindo a
decisão a declarações "depreciativas e ameaçadoras" do presidente eleito
Jair Bolsonaro (PSL).
Ainda não se sabe como será o futuro desses profissionais, mas a
expectativa divulgada é de que médicos cubanos deixem o País até 31 de
dezembro.
O cenário preocupa Rodríguez. Para ele, o retorno a seu
país de origem não é uma possibilidade. Vivendo no Brasil ele não só
consegue exercer sua profissão, como constituiu uma família. "Eu amo o
meu país, mas não quero voltar para lá de maneira compulsória. Eles não
podem decidir por mim. Eles não perguntaram se eu queria ficar no
Brasil. E eles também não me deixam fazer a prova para revalidar o
diploma", afirma em entrevista ao HuffPost Brasil.
Eles não perguntaram se eu queria ficar no Brasil. E eles também não me deixam fazer a prova para revalidar o diploma.Frank Rodríguez, médico cubano, em entrevista ao HuffPost Brasil.
Contrariando
o governo cubano, Rodríguez deu entrada ao processo do Revalida (Exame
Nacional de Revalidação de Diplomas Médicos Expedidos por Instituições
de Educação Superior Estrangeira) como tentativa de permanecer no País.
Iniciado em 2017, o exame ainda está em andamento e a segunda fase será
realizada no próximo sábado (17) e domingo (18).
"Não tenho
assistência nenhuma da empresa estatal que cuida do meu contrato, apenas
assinei o documento e é isso. Eles tentam proibir a gente de fazer o
Revalida porque é o único jeito de manter a gente vinculado ao governo
cubano. E eles têm medo de perder o contrato porque somos os empregados
que estão aportando uma grande quantidade de dinheiro para Cuba",
argumenta Rodríguez.
Documentos obtidos pela reportagem do
HuffPost Brasil comprovam que Cuba não permite que os profissionais do
Mais Médicos prestem o exame enquanto fazem parte do programa. No
contrato firmado entre os profissionais e a empresa Comercializadora de
Servicios Médicos Cubanos S.A (CSMC), estatal cubana responsável pela
parceria, uma das cláusulas de obrigações por parte do profissional se
refere ao Revalida. Lê-se: "Não requerer exames de revalidação para o
exercício da profissão".
O documento também afirma que prestar o
exame do Revalida é uma das justificativas para a quebra de contrato e a
desvinculação do programa (leia mais sobre o contrato abaixo).
"Com o meu diploma revalidado eu não preciso mais deles [do governo de
Cuba]. Depois de passar na prova, vou poder dar entrada as documentações
e vou ter direito ao CRM [registro no Conselho Regional de Medicina
necessário para exercer a profissão no Brasil]. Você fica igual ao
médico brasileiro", desabafa.
A cubana Yanelis Miranda Herrera está no Brasil desde 2013 e passou
cerca de 2 anos atuando como médica da família no interior do Paraná.
Atualmente, ela é considerada por Cuba uma desertora. Isso porque, em
2016, Yanelis foi desligada do programa Mais Médicos depois de ter
processado o governo cubano.
"Em Cuba, nós assinamos o contrato e o
documento deixa claro que nós íamos ganhar cerca de R$ 3 mil reais. Mas
ninguém me explicou que os outros médico estrangeiros iam ganhar mais
de R$ 10 mil reais. É essa a injustiça. As pessoas não sabem da metade
do que faz Cuba. Eles falam de humanismo, mas olha o que fazem com a
gente. É uma escravidão", desabafa em entrevista ao HuffPost Brasil.
É injusto eu ser médica e não poder trabalhar. Os brasileiros precisam de atendimento adequado.Yanelis Miranda Herrera, médica, em entrevista ao HuffPost Brasil.
A
médica foi uma das profissionais que entrou na justiça para receber a
totalidade do pagamento estipulado pelo programa, de cerca de R$ 11 mil
reais. De acordo com o contrato cubano, os profissionais recebem apenas
30% do valor. O resto do montante é direcionado para a estatal, que
administra os valores junto ao governo e reinveste em serviços públicos
no país, como saúde e educação.
Depois do processo, a cubana conta
que teve o seu contrato suspenso e chegou a recebeu uma passagem de
avião para voltar ao seu país de origem. Porém, a perspectiva de
retornar para uma condição de vida precária fez com que Yanelis
preferisse permanecer no Brasil, mesmo impedida de exercer a sua
profissão.
Cubanos são contratados em regime diferente
O acordo que permite a vinda dos profissionais cubanos é firmado com a Opas (Organização Panamericana de Saúde), e não individualmente com cada médico que quer vir para o Brasil. Por isso, o valor total da bolsa é pago para a Opas que repassa o valor para o Ministério da Saúde de Cuba e, então, transfere os 30% estipulados pelo contrato a cada um dos profissionais. Em 2018 houve reajuste e o valor da bolsa é de R$ 11.865,60. Em Cuba, todo os médicos são funcionários públicos do Ministério da Saúde. O dinheiro que é retido pelo governo cubano é reinvestido em serviços públicos no país.
"Eu
trabalhava como médica da família em Cuba, mas decidi vir para o Brasil
porque não tem condições de alguém morar lá. Eles não pagam pelo
plantão, meu filho não tinha chance de futuro nenhum, eu não conseguia
comprar nem o frango de almoço para a minha família, e isso é porque eu
era médica especializada. Quem aguentaria viver lá?", questiona. "Decidi
que eu iria ficar aqui, mesmo que ilegal. Eles me tiraram do programa e
disseram que eu ia ter que ficar 8 anos sem pisar em Cuba. Eles acham
que podem mandar na gente, mas nós queremos ser livres."
Depois de
ficar um ano desempregada, Yanelis começou a trabalhar como auxiliar de
consultório em uma clínica de Curitiba, mas sonha em voltar a exercer a
sua profissão.
"É óbvio que a gente trabalha no que surgir. Mas
eu me formei com o coração também. É injusto eu ser médica e não poder
trabalhar. Os brasileiros precisam de atendimento adequado. É tudo muito
injusto."
Os números do programa "Mais Médicos"
Orçamento: Em 2017, o Ministério da Saúde do Brasil destinou R$ 3,1 bilhões para o Programa Mais Médicos. Para 2018, a cifra é de R$ 3,3 bilhões.
Profissionais: Em 2017, o Ministério da Saúde do Brasil abriu concurso para selecionar brasileiros para o programa: 6.285 se inscreveram para 2.320 vagas disponíveis. Apenas 1.626 apareceram para trabalhar. Cerca de 30% dos profissionais deixaram seus postos de trabalho antes de um ano de serviço.
Atualmente, os médicos cubanos ocupam 8.332 das 18.240 vagas do programa. Eles trabalham em 2.885 cidades, sendo que 1.575 municípios só possuem cubanos atendendo a população.
Os cubanos são responsáveis por 75% dos atendimentos a população indígena no Brasil.
O Mais Médicos ainda conta com cerca de 2.000 vagas ociosas.
Assim
como para Yanelis, retornar para Cuba também não é uma possibilidade
para Rodríguez. O médico já construiu uma família no Brasil e teme ser
afastado de sua esposa. "Eu quero ficar. Eu não posso voltar para Cuba,
porque se eu for para lá eu não tenho nenhuma garantia de que eu volte
para o Brasil e consiga ficar com a minha família", explica.
Ainda
não se sabe como deverá ser feita a transição dos profissionais, mas a
expectativa divulgada é de que médicos cubanos deixem o País até 31 de
dezembro.
O advogado brasileiro André Santana Corrêa representa parte dos
médicos cubanos em ações na Justiça Federal. Segundo ele, os
profissionais alegam falta de igualdade de condições em relação aos
brasileiros e outros estrangeiros que participam do Mais Médicos. As
principais questões são a dificuldade para renovar a participação no
programa e a disputa pelo salário integral.
"Esse acordo sempre
veio carregado de premissas falsas, uma vez que o médico cubano nunca
teve o valor do seu trabalho reconhecido nem pelo Brasil, nem por Cuba. O
tratamento aos cubanos nunca foi isonômico: os médicos recebem cerca de
30% do salário total previsto pelo programa, enquanto outros médicos
estrangeiros recebem todo o valor. Ainda tem o fato de que o período de
contratação nunca pode ser prorrogado no programa, a não ser via
processo judicial", argumenta em entrevista ao HuffPost Brasil.
Com
a saída de Cuba do acordo, a perspectiva de Correa é de que os cubanos
que desejarem permanecer no Brasil tenham os seus direitos reconhecidos.
Durante entrevista coletiva na última quarta-feira (14), Bolsonaro
voltou a questionar a formação e a qualidade do atendimento prestado
pelos cubanos na saúde, mas ofereceu asilo aos profissionais que
quiserem permanecer no País.
"É um desrespeito com quem recebe
tratamento por parte desses cubanos. Não temos qualquer comprovação de
que eles sejam realmente médicos e estejam aptos a desempenhar a função.
Vocês mesmos, eu duvido que alguém queira ser atendido pelos cubanos",
disse Bolsonaro."O programa não está suspenso. Profissionais de outros
países podem vir para cá. E, a partir de janeiro, nós pretendemos dar
uma satisfação às populações desassistidas. O cubano que pedir asilo
aqui vai poder ficar", completou.
Para o médico cubano Frank
Rodríguez, a fala de Bolsonaro é preconceituosa. "Eu sinto um certo
preconceito quando ele fala. Mas não é só na fala dele. Eu sou um bom
médico como qualquer outro. Talvez, se eu tivesse feito essa prova logo
no início do programa, as pessoas não estariam questionando os
profissionais de Cuba. Talvez fosse menor o preconceito. Eu não estou
fugindo da prova, nem os meus colegas", explica o médico.
Rodríguez
disse que a decisão do governo cubano não foi uma surpresa, porém o
profissional esperava que o fim do programa ocorresse apenas em 2019.
"Eu tinha esperança que o fim do acordo fosse acontecer mais para frente
no ano que vem, quando Bolsonaro fosse presidente de verdade. A notícia
não foi uma surpresa porque eu acompanhava o que ele dizia sobre os
médicos cubanos nas eleições, e ele foi bem claro. Mas agora eu tenho
que correr para ajeitar a documentação e revalidar o meu diploma."
Médicos
formados no exterior não podem atuar no País sem a aprovação no
Revalida, com exceção daqueles que atuam no "Mais Médicos", que não
precisam fazer o exame. Em 2017, ao julgar ações que questionavam o
programa, o STF (Supremo Tribunal Federal) validou o programa e manteve a dispensa do Revalida nos contratos de até 3 anos.
De
acordo com a lei que regulamenta o projeto, não há necessidade devido
ao caráter emergencial da saúde pública no País. No entanto, para os
profissionais que desejarem renovar a permanência no programa, o
Revalida é necessário. "Os médicos brasileiros que se formaram no
exterior não precisam revalidar o diploma para atuar no programa, seria
injustiça exigir apenas dos cubanos", argumenta o advogado André Corrêa.
*Identidade foi alterada na reportagem a pedido do entrevistado.
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