“Eu entendi a parte espiritual e me propus a salvar as pessoas de corpo,
alma e espírito”. Assim se defende Ana Vindoura Dias da Luz, 65 anos,
acusada de manter em cárcere privado por quatro meses uma jovem de 18
anos em casa, no núcleo rural do Gama. O motivo: a garota estaria
possuída pelo demônio. “Quando Deus resolveu salvar o homem, teve que
enfrentar o pior inimigo, que são os demônios e eles existem. Eles
manipulam a cabeça das pessoas para fazer o que querem”, disse Ana ao Correio.
Às margens da DF-290, funciona a Igreja Adventista Remanescente de
Laodiceia, fundada por Ana, que não se diz profeta, mas obreira da
comunidade. Em 28 de dezembro, ela foi presa pelos agentes da 20ª
Delegacia de Polícia (Gama), depois que uma denúncia chegou à Polícia
Civil. A vítima do cárcere era uma garota que morava com a comunidade
desde os 5 anos, por decisão da mãe. Ana garantiu que a jovem era livre
para circular pela chácara, apesar de recorrer à alegação da possessão
para manter a garota sem contato com o mundo exterior.
A
líder da seita diz que, até 2017, a jovem frequentava um colégio na
região de Engenho das Lajes, área rural do Gama, mas que, por conta das
crises, no ano passado parou de estudar. No entanto, nenhum laudo médico
ou psicológico atestava qualquer doença mental para a jovem. Ana disse
ter pensado em chamar um psicólogo para avaliar os membros da
comunidade, o que não aconteceu.
Segundo a mãe, a
garota sempre demonstrou “problemas de irritação e desobediência” e foi
levada a um psicólogo ainda criança. “Chamaram-na de hiperativa. Para
eles (psicólogos) é normal essa situação em uma criança”, comentou a
mãe, que deu entrevista ao Correio ao lado de outros líderes da seita,
na sede da igreja. Ana diz que doenças não fazem parte do plano de Deus
e que, portanto, é “trabalho de demônios”.
Sessões privadas
Na
Igreja foi dito que essas criaturas, de tempos em tempos, tomavam o
corpo da moça. A mãe disse que a filha “fazia coisas e depois não se
lembrava”. Para curá-la, a solução seriam sessões privadas de oração e
estudos bíblicos. Foi nessa situação que os policiais encontraram a
moça. Os integrantes da igreja afirmaram que ela orava com um presbítero
em um quarto trancado para que ninguém interrompesse.
De
acordo com Ana Dias, a garota havia tentado partir outras vezes. No
começo do ano passado, ela queria ir morar com o pai em São Luís, no
Maranhão, e a mãe, alegando que o local era perigoso, não deixou. A
obreira diz que outros adolescentes viveram situações semelhantes. “Tem
época que está todo mundo bem, mas tem período que arrocha. Aí, você não
os deixa sós, porque eles cortam os punhos, o demônio tenta matar,
tenta enforcar. É uma guerra tremenda. Como deixar uma pessoa dessas
sozinha?”
Trabalho escravo
A
história da congregação começou há 10 anos, em Corumbá de Goiás. A
princípio, Ana Dias reunia um pequeno grupo para estudos bíblicos. Com
mais adeptos, eles passaram a fazer caravanas itinerantes pregando pelo
Brasil. Por seis meses, estiveram em Cuiabá (MT), vendendo e
distribuindo conteúdo religioso. Nesse período, em 2014, a obreira foi
acusada de trabalho escravo e infantil pelo Ministério Público do
Trabalho de Mato Grosso.
O
juiz José Roberto Gomes, da 4ª Vara do Trabalho de Cuiabá, condenou os
réus ao pagamento de R$ 100 mil em indenizações. A defesa recorreu. O
processo se encontra junto no Tribunal Superior do Trabalho (TST), sob
sigilo.
Entenda o caso
Isolada do mundo
A
Polícia Civil diz que ao menos três mulheres foram mantidas em cárcere
privado na chácara onde funciona a Igreja Adventista Remanescente de
Laodiceia e moram cerca de 400 fiéis. Duas foram resgatadas pelos pais.
Agentes libertaram a terceira, de 18 anos, após a jovem pedir ajuda a
amigos.
O resgate ocorreu em 27 de dezembro.
Segundo o delegado responsável pelo caso, a vítima era mantida no
cativeiro por Ana Dias, líder da igreja. Presa, ela conseguiu a
liberdade provisória em uma audiência de custódia e será indiciada pelo
crime de cárcere privado.
A jovem pediu ajuda
a amigos em 26 de dezembro. Ela pegou o telefone celular de Ana —
enquanto a líder dormia — e mandou mensagens de texto a ex-membros da
comunidade. A menina tentou se esconder em uma mata, mas foi encontrada
pelos membros da seita e levada de volta ao cárcere, de acordo com a
investigação.
CB

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