SENTENÇA
I. Relatório
Trata-se de Mandado de Segurança, com pedido de liminar, impetrado por Davi Brandão Farias em face de ato omissivo atribuído ao Prefeito e ao Secretário Municipal de Administração de Pio XII.
O impetrante alega, em síntese, que planeja realizar um evento denominado "Bingão da Independência" em praça pública desta cidade, no próximo dia 26 de setembro de 2025. Sustenta que, para tanto, cumpriu a única exigência constitucional para o exercício do seu direito de reunião, qual seja, o "prévio aviso à autoridade competente", nos termos do artigo 5º, inciso XVI, da Constituição Federal.
Afirma, contudo, que as autoridades impetradas permanecem inertes, sem responder à sua comunicação e sem adotar as providências logísticas solicitadas, como a interdição de vias para garantir a segurança dos participantes. Invoca o Tema 855 da Repercussão Geral do Supremo Tribunal Federal (STF) para argumentar que o "aviso prévio" não se confunde com um pedido de autorização, mas sim com uma comunicação para que o Poder Público colabore com a organização do evento.
Diante da proximidade da data agendada, requer a concessão de medida liminar para determinar que os impetrados respondam formalmente ao seu pleito em 24 horas, apresentando as condicionantes para a realização do evento, sob pena de, no silêncio, ser considerado autorizado nos moldes comunicados.
É o breve relatório. Decido.
II. Fundamentação
O Mandado de Segurança é o remédio constitucional destinado a proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade.
A liquidez e a certeza do direito são, portanto, pressupostos processuais específicos desta ação, exigindo que os fatos e o direito invocado sejam demonstrados de plano, por meio de prova pré-constituída, sem a necessidade de dilação probatória.
O impetrante constrói sua tese sobre um sólido pilar do nosso ordenamento jurídico: o direito fundamental à reunião, previsto no artigo 5º, inciso XVI, da Constituição. De fato, o STF, no julgamento do Tema 855 (RE 806.339), pacificou o entendimento de que a exigência de "aviso prévio" tem por finalidade "permitir ao poder público zelar para que seu exercício se dê de forma pacífica ou para que não frustre outra reunião no mesmo local", não se tratando de um pedido de autorização sujeito ao crivo de mérito da administração.
Contudo, a análise não pode se esgotar nesse ponto. O direito de reunião, como qualquer outro direito fundamental, não é absoluto. Ele encontra limites nos demais preceitos do ordenamento jurídico, especialmente quando seu exercício visa dar suporte a uma atividade manifestamente ilícita.
O cerne do evento que o impetrante busca realizar é, como o próprio nome indica, um "bingão", ou seja, a exploração de um jogo de bingo de cartela. Ocorre que, no atual estágio da legislação brasileira, tal atividade constitui uma contravenção penal. O artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais) tipifica expressamente a conduta de "estabelecer ou explorar jogo de azar em lugar público ou acessível ao público". O parágrafo 3º do mesmo artigo define como jogo de azar aquele "em que o ganho e a perda dependem exclusiva ou principalmente da sorte", descrição na qual o bingo se enquadra perfeitamente.
A breve janela de legalidade para a prática do bingo, aberta pelas Leis nº 8.672/93 ("Lei Zico") e nº 9.615/98 ("Lei Pelé"), foi definitivamente encerrada pela Medida Provisória nº 168/2004, que proibiu expressamente a exploração de todos os jogos de bingo em território nacional. A jurisprudência é pacífica ao afirmar que a exploração comercial de jogos de bingo não encontra amparo no ordenamento jurídico vigente, sendo, portanto, uma atividade ilícita, senão vejamos:
Procedimento de jurisdição voluntária – PEDIDO DE ALVARÁ JUDICIAL PARA PROMOÇÃO DE BINGO BENEFICENTE – Exploração de jogos de bingo que é ilícita – Conduta tipificada como contravenção penal – Precedentes deste E. Tribunal – Sentença reformada. RECURSO PROVIDO. (TJ-SP - Apelação Cível: 1005024-79 .2021.8.26.0220 Guaratinguetá, Relator.: Maria Fernanda de Toledo Rodovalho, Data de Julgamento: 14/06/2023, 6ª Câmara de Direito Público, Data de Publicação: 14/06/2023)
APELAÇÃO CRIMINAL. AÇÃO PENAL PÚBLICA. JOGO DO BINGO DE CARTELA. ART . 50, CAPUT, DO DECRETO-LEI N. 3.688/41). SENTENÇA CONDENATÓRIA . IRRESIGNAÇÃO EXCLUSIVA DA ACUSADA. AVENTADA ILICITUDE NA APREENSÃO DE NUMERÁRIO NA RESIDÊNCIA. PRETENDIDA RESTITUIÇÃO DO DINHEIRO. NÃO ACOLHIMENTO . ACUSADA QUE RECEBE CERCA DE 2 (DOIS) SALÁRIOS MÍNIMOS. VALOR APREENDIDO QUE É SUPERIOR/CONTRADITÓRIO À RENDA DA ACUSADA E ESTAVA GUARDADO EM UM COFRE, EM QUARTO AO LADO DO QUE OCORRIA A PRÁTICA DO DELITO. IMPOSSIBILIDADE DE RESTITUIÇÃO. ALEGADA ATIPICIDADE DA CONDUTA . INSUBSISTÊNCIA. EXPLORAÇÃO DE JOGOS DE AZAR QUE ESTÁ TIPIFICADA COMO CONTRAVENÇÃO PENAL. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO SOCIAL. PRECEDENTES . MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. APREENSÃO DE OBJETO DESTINADO À PRATICA DELITIVA EM QUESTÃO (APOSTAS, TERMINAIS ELETRÔNICOS, QUANTIA EM ESPÉCIE). RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. SENTENÇA MANTIDA PELOS PRÓPRIOS FUNDAMENTOS (LEI N . 9.099/95, ART. 82, § 5º). (TJSC, APELAÇÃO CRIMINAL n . 5038787-21.2021.8.24 .0038, do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, rel. Reny Baptista Neto, Primeira Turma Recursal, j. Thu Aug 11 00:00:00 GMT-03:00 2022). (TJ-SC - APR: 50387872120218240038, Relator.: Reny Baptista Neto, Data de Julgamento: 11/08/2022, Primeira Turma Recursal)
Dessa forma, o impetrante busca a tutela jurisdicional para compelir a Administração Pública a adotar providências que, na prática, viabilizariam a realização de um evento cuja atividade principal é tipificada como contravenção penal. O direito de reunião não pode servir de escudo para a prática de um ilícito. Não há como o Poder Judiciário impor ao Poder Executivo o dever de colaborar com uma atividade contrária à lei penal.
A tese firmada no Tema 855 do STF pressupõe, por óbvio, que o objeto da reunião seja lícito. A colaboração do Estado visa garantir a segurança e a ordem em manifestações e eventos que se encontram dentro dos limites da legalidade. Não se pode interpretar tal precedente como um salvo-conduto para a organização de eventos com finalidade ilícita.
Adicionalmente, cumpre registrar que a competência para legislar sobre sistemas de sorteios, incluindo bingos, é privativa da União, conforme o artigo 22, inciso XX, da Constituição. Essa exclusividade foi consolidada pelo STF na Súmula Vinculante nº 2, que declara ser "inconstitucional a lei ou ato normativo estadual ou distrital que disponha sobre sistemas de consórcios e sorteios, inclusive bingos e loterias". Assim, nem mesmo o Município de Pio XII teria competência para autorizar o evento, ainda que o quisesse.
Reconheço que a matéria é objeto de intenso debate nacional, tanto no Congresso Nacional, com a tramitação do PL 2234/2022, que busca criar um marco regulatório para os jogos, quanto no próprio STF, que analisará a recepção do artigo 50 da Lei de Contravenções Penais pela Constituição de 1988 (Tema 924, RE 966.177).
Contudo, este juízo deve se pautar pela legislação vigente. E, hoje, a exploração do bingo permanece sendo uma contravenção penal. A existência de propostas de alteração legislativa e de discussões judiciais pendentes apenas reforça o status atual de ilicitude da prática.
Dessa forma, a pretensão de compelir a Administração Pública a colaborar com um evento cuja atividade principal constitui uma contravenção penal carece de amparo legal. Não há direito líquido e certo a ser protegido quando o objeto da ação é, em si, contrário à lei. A petição inicial é, portanto, manifestamente inepta para a via eleita.
A bem da verdade, causa espécie a tentativa de instrumentalizar o Poder Judiciário como um partícipe necessário para a consumação de um ilícito penal. A nobre via do Mandado de Segurança, concebida para proteger direitos violados, não pode ser desvirtuada para obter chancela judicial a uma atividade que a própria legislação penal rechaça. Tal manobra não apenas revela um profundo desapreço pela ordem jurídica, mas também representa uma afronta à dignidade da Justiça, que não pode e não será cúmplice de subterfúgios que visem contornar a expressa vedação legal.
Por fim, considerando que a narrativa dos fatos da petição inicial noticiam que o Impetrante "com frequência promove eventos de caráter social e recreativo, consistentes no sorteio de prêmios para a população das cidades dessa Macrorregião Maranhense", o que pode, em tese, configurar a contravenção penal prevista no artigo 50 do Decreto-Lei nº 3.688/41, impõem a este juízo o dever de comunicar o fato ao Ministério Público, para que adote as providências que entender cabíveis, conforme dispõe o artigo 40 do Código de Processo Penal.
III. Dispositivo
Ante o exposto, com fundamento no artigo 10 da Lei nº 12.016/2009, INDEFIRO A PETIÇÃO INICIAL e, por conseguinte, JULGO EXTINTO O PROCESSO SEM RESOLUÇÃO DO MÉRITO, nos termos do artigo 485, inciso I, do Código de Processo Civil, pela ausência de direito líquido e certo.
Custas pelo impetrante, já satisfeitas. Sem condenação em honorários advocatícios, nos termos do artigo 25 da Lei nº 12.016/2009.
Remetam-se cópias integrais dos autos ao Ministério Público para as providências que entender pertinentes, na forma do artigo 40 do Código de Processo Penal.
Publique-se. Registre-se. Intimem-se.
Após o trânsito em julgado, arquivem-se os autos com as devidas baixas.
Pio XII/MA, datada e assinada eletronicamente.
DANIEL LUZ E SILVA ALMEIDA
Juiz de Direito Titular da Vara Única da Comarca de Pio XII



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